4.12.2005

"O testamento do Papa é amarga confissão"

ROMA. O jornalista e ensaísta italiano Giancarlo Zizola é considerado um dos maiores vaticanistas de seu país. Ele escreveu diversos livros, entre eles "O Sucessor" e "L’Altro Wojtyla" (O Outro Wojtyla). Zizola enxerga além do horizonte formado pela multidão nos funerais do Papa João Paulo II.

Para ele, tanta gente nas ruas do Vaticano é um símbolo forte da necessidade dos fiéis terem mais proximidade das decisões internas da Igreja.

Não por acaso, ele prevê que a opinião pública terá influência direta no conclave. Nesta entrevista ao GLOBO, Zizola destaca a prioridade do próximo Papa: realizar reformas.


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Como o senhor analisa a situação atual da Igreja diante deste conclave que iniciará na segunda-feira?

GIANCARLO ZIZOLA: - Os cardeais têm a necessidade de se apropriar novamente da palavra. Interpreto este conclave como um pequeno concílio ecumênico, inclusive pelo aspecto da sua composição com representantes de diversas nações. É a única vez em que eles exercitam a soberania da Igreja. Os cardeais obedecem à própria consciência e podem dar espaço e liberdade às próprias opiniões. Na sede vacante eles têm a responsabilidade indelegável de eleger o Papa e não devem ser condicionados pelo mundo externo. Mas, segundo a Constituição Apostólica de João Paulo II, este deve ser um processo de toda a Igreja, não só dos cardeais. Por isso é importante a opinião pública. Pela primeira vez, a opinião pública do mundo inteiro participa do processo de decisão, discutindo e questionando sobre temas do futuro da Igreja. Nunca um evento midiático alcançou esta dimensão. A opinião pública entra no conclave. Toda esta gente se apropriou da figura do Papa antes de devolvê-la ao monopólio do Templo. O povo é sujeito do conclave e exprime o tipo de Papa que ele deseja. Até o século VII o Papa era eleito pelo clero e pelo povo. Depois as eleições se transformaram em guerras entre os partidos, até que o Papa Estevão IV (816-817) decidiu excluir os delegados e começou o escrutínio secreto com voto de maioria. Ele mudou o sistema por razões de ordem pública e não por motivos eclesiásticos. A fumaça branca (que anuncia que um novo Papa foi eleito) é o único resíduo que simboliza o direito do povo de eleger o Papa. Portanto, a fumaça informa o povo como vão as coisas dentro do palácio apostólico.

João Paulo II estabeleceu que a eleição de um Papa não deve ser só dos cardeais e sim um processo de toda a Igreja. Mas o pontificado dele não tocou na colegialidade, mencionada pelo Concílio Vaticano II, na qual os bispos reivindicam mais voz na Igreja...

ZIZOLA: Nas primeiras declarações de alguns cardeais, eles expressaram um desejo de reforma. A primeira reforma é aquela que João Paulo II já havia anunciado. Ele declarou que a reforma, exercício da soberania do Pontífice, é necessária porque a carga é enorme e não pode ser suportada por um homem sozinho. Isso significa que a prioridade é recuperar o Concílio Vaticano II no aspecto da colegialidade no governo da Igreja católica universal para reequilibrar os dogmas do primado e da infalibilidade do Papa, estabelecidos pelo Concílio Vaticano I . Na parte do testamento de João Paulo II escrita em 2000, ele disse que o seu sucessor deve realizar o Concílio Vaticano II. Ele teve quase 27 anos para fazer estas reformas e não as realizou, criando um vazio. Isto significa que ele não conseguiu atuar, provavelmente porque as reformas foram inibidas pela estrutura centralizadora da Cúria romana (o governo e os “ministérios”da Igreja). O testamento do Papa é amarga confissão.

Por que ele preferiu fazer tantas viagens e não tocar no governo central da Cúria?

ZIZOLA: Ele optou por um ministério viajante e por uma dinâmica de visitar as Igrejas locais da Terra na ilusão de que a conseqüência seria uma onda gigante de retorno, como uma tsunami na rigidez do governo central. Acredito que daqui a muitos anos ele terá razão, mas o resultado imediato foi contrário ao que ele esperava. Ele acabou reforçando o poder central da Igreja.

A maioria dos cardeais eleitores é de países europeus, mas a América Latina concentra a maioria dos fiéis. O que pensa a respeito?

ZIZOLA: A análise do conclave anterior não pode valer para o atual. Um dos critérios obsoletos é o nacional, porque a Igreja internacionalizou-se. Atualmente a maioria dos católicos não está na Europa. O colégio dos cardeais também se internacionalizou e reflete de maneira assimétrica os movimentos sociológicos da população católica no mundo. Por exemplo, no atual colégio cardinalício, 11 cardeais são asiáticos e 20 são italianos. Considere que, na Ásia, os católicos representam cerca de 1,5 % da população e na Itália os católicos são cerca de 80% da população. Se estas proporções relativas ao número de cardeais de acordo com a população fossem respeitadas, a Itália deveria ter em torno de 50 cardeais. O critério nacionalista não valia já na segunda metade do século passado quando aos poucos foi diminuindo a quota de cardeais italianos. Até o conclave de Paulo VI, os italianos controlavam um terço do colégio. Outro dado é que a maioria dos católicos está no sul do mundo. A América Latina é o primeiro continente com a maioria dos católicos do mundo. Quanto ao índice de crescimento da população católica, a África está em primeiro lugar com um aumento de 120% por ano. Na Europa este índice está próximo a zero.

Se o próximo Papa for italiano, ele será conservador?

ZIZOLA: É necessário explicar que se ele for italiano não será necessariamente conservador. Poderá ser um progressista. Assim como não significa que um estrangeiro seja progressista. Existem diferentes tendências ideológicas entre os cardeais de um mesmo país. Pode ser que o próximo Papa não seja italiano e nem europeu. Neste caso, corresponderia a uma evolução internacional dentro da Igreja ligada à atual configuração sociológica. O catolicismo é uma religião universal com a maioria dos fiéis fora da Europa, sendo que a maior parte deles fica na América Latina.

O próximo Papa será um homem com experiência no governo da Igreja?

ZIZOLA: A Igreja precisa de reformas. João Paulo II não realizou reformas dentro do governo da Igreja, deixando este problema suspenso ou descuidado. O próximo Papa precisará saber como realizá-las.

Há a possibilidade de o próximo Papa desviar a atenção para temas externos ao governo da Igreja como fez João Paulo II com suas viagens?

ZIZOLA: Não faço previsões e sim análises. A composição do colégio dos cardeais é dispersa, não há mais blocos ideológicos homogêneos, são várias tendências, mas é fundamental saber qual Papa para qual Igreja e qual Igreja para qual sociedade. Não podemos esquecer que a missão da Igreja é para a sociedade e não para si mesma. O problema é saber quais são as prioridades da Igreja, segundo os cardeais.